Faço parte de uma geração que cresceu nos anos 80. Que passou, como que de raspão, ao lado das convulsões sociais. Muitas vezes, inconsciente dos traços de ruralidade, de interioridade e de desnorte que marcaram a década de 70. Uma geração para quem " a liberdade é hoje nome de avenida ".
A verdade é que a estabilidade de uma democracia consolidada deixou para trás o PREC, o MES, o MFA, e tantas outras siglas, que pouco nos dizem nos tempos que correm. Daí que os primeiros registos de Sérgio Godinho se revistam de uma natureza inegavelmente documental; testemunhos vários de um Portugal a preto e branco, de um país em constante sobressalto, de uma ansiedade incontida. Menos ou mais panfletários (cfr. " De pequenino se torce o destino "), projectam nos seus temas um ideário demarcado e assumido pelo próprio Sérgio Godinho, que porém é ultrapassado pelo realismo que as suas letras encerram. Estas são feitas de palavras de ordem, de caricaturas ao poder e de uma sincera esperança. E esta não pode ser ideologicamente apropriada. E o que quer isto dizer ? Que quem não se identifica ideologicamente com o ideário de esquerda, não passa mesmo assim ao lado destas letras. O imaginário godinhesco, a poesia que dele emerge, não pode ser remetida ao mero compromisso político; o seu compromisso é com a realidade da altura.
As letras de Godinho, encontramo-las na rua, nas conversas de café e nos ditados populares; nos murais da altura e nas ocupações rurais; percorrem as lutas sindicais, atravessam a fronteira rumo a França e olham Portugal do exílio.
Foi no exílio que, em 1971, Sérgio Godinho e José Mário Branco gravaram dois dos mais importantes álbuns da música portuguesa. Apresentados no mesmo dia, " Os sobreviventes " e " Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades " são parentes por afinidade, por vezes confundindo-se ao partilharem vozes, instrumentos, e até mesmo um tema (" O charlatão ") no alinhamento. Ainda assim a dicotomia entre um e outro reflecte-se desde logo em ambas as capas, uma branca e a outra negra, o primeiro mordaz e o segundo mais sóbrio. Descobri o primeiro deles após uma paragem em " Campolide " e uma ida ao " Rivolitz ".
« Vim ao mundo por acaso, em Portugal não tenho pátria / sou sozinho e sou da cama dos meus pais ».
Deste álbum guardo na memória versos como o acima transcrito ( 'Descança a cabeça estalajadeira' ). A metafórica cadência lenta e penosa de " Que força é essa ", resgatada por José Mário no último O irmão do meio. O lamento mordaz de " quem vive com a fome enterrada na garganta " e, sentado, espera a revolução ( 'Que bom que é' ). Os primeiros acordes d' " O charlatão ", por momentos irreconhecível, em pleno Coliseu, há dois anos atrás.
Enfim ... um álbum que se escuta à noite. Que se discute ao jantar. Que se revisita antes e depois de Abril.
« Entre a rua e o país vai um passo de um anão / Vai o rei que ninguém quis / Vai um tiro de um canhão / e quem enriquece é o charlatão ... »
Pedro Sousa
( Um obrigado ao Paulo pela referência )